Make It Clear Brasil

Um apoio ao livre pensamento e a um entendimento do mundo baseado em evidências

Como a transição para a agricultura remodelou o genoma humano

O esqueleto do homem de La Braña, descoberto em uma caverna espanhola, tem cerca de 8 mil anos de idade. De acordo com os cientistas, sua pele era escura e seus olhos, azuis, combinação que raramente se vê no europeu moderno. Crédito: J.M. Vidal Encina (foto); CSIC (ilustração)

O esqueleto do homem de La Braña, descoberto em uma caverna espanhola, tem cerca de 8 mil anos de idade. De acordo com os cientistas, sua pele era escura e seus olhos, azuis, combinação que raramente se vê no europeu moderno. Crédito: J.M. Vidal Encina (foto); CSIC (ilustração)

Os seres humanos que habitavam o continente europeu eram caçadores-coletores até cerca de 8.500 anos atrás, quando a agricultura se difundiu pela região. De acordo com um novo estudo do DNA de um esqueleto humano de quase 8.000 anos de idade, estes habitantes não eram capazes de digerir amido ou leite, mas já possuíam defesas imunológicas contra algumas das doenças que, mais tarde, castigariam a humanidade, além do fato de terem a pele escura. Estas descobertas recentes vêm auxiliando os pesquisadores na busca por mudanças genéticas pelas quais os humanos passaram na transição da caça e coleta para a agricultura.

Admite-se que a agricultura tenha surgido no Oriente Médio, há 10 mil anos, e que os agricultores de lá tenham migrado em direção à Europa. Porém, nas últimas décadas, só foi possível aos cientistas estudar este evento fazendo inferências a partir da genética dos Europeus modernos. Agora, técnicas mais sofisticadas para a extração e o sequenciamento de DNA a partir de ossadas antigas nos mostraram a composição genética de ambos, agricultores e caçadores-coletores, o que possibilita análises da migração, da interação entre os grupos e da agricultura enquanto fator transformador da biologia humana.

Um junho de 2012, uma equipe de pesquisadores liderada por Carles Lalueza-Fox, da Universidade de Barcelona (Espanha), comunicou a realização do sequenciamento do DNA das mitocôndrias — fábricas de energia das células — de um esqueleto de caçador-coletor descoberto em 2006 no sítio de escavações de La Braña-Arintero, situado no noroeste da Espanha. Os restos mortais estavam acompanhados de outro esqueleto, ornamentos feitos com dentes de veado-vermelho e de outros animais.

O genoma obtido daquele habitante da Europa Meridional demonstrou ser bastante similar aos genomas de diversos outros caçadores-coletores do norte e leste do continente, o que sugeriu que os primeiros caçadores-coletores nômades eram um grupo muito mais coeso genética e culturalmente do que os pesquisadores imaginavam.

No novo estudo, publicado pela Nature, Lalueza-Fox se juntou a Eske Willerslev, especialista em DNA antigo da Universidade de Copenhague, e a outros cientistas para sequenciar completamente o DNA nuclear do mesmo esqueleto encontrado em 2006. Apesar de estar em estágio de rascunho, foi possível comparar alguns dos principais genes do novo genoma envolvidos na determinação das cores da pele e dos olhos, na dieta e no sistema imunológico com os dos primeiros agricultores e os dos europeus modernos, o que nos dá alguns indicativos das mudanças que ocorreram nas populações europeias conforme a agricultura se alastrou.

Entre as descobertas surpreendentes está a de que o homem de La Braña tinha a pele escura e os olhos claros, combinação que dificilmente se vê na população moderna. Mesmo que a pele dos europeus do sul tenda a ser um pouco mais escura que as dos demais nascidos no continente, a tonalidade continua sensivelmente mais clara se comparada à dos africanos, uma adaptação que, acredita-se, está ligada à necessidade de absorção de mais luz solar para a produção de vitamina D em quantidade adequada. Esta característica do homem de La Braña tem sido observada em vários outros genomas estudados atualmente, o que sugere a coesão mencionada acima.

Para Lalueza-Fox, os caçadores-coletores obtinham a maior parte da vitamina D de que precisavam da carne que ingeriam, e a seleção natural não levou à evolução da pele clara até o surgimento da agricultura e, portanto, das dietas baseadas nos carboidratos. A carne, o peixe e os ovos, hoje, compõem uma proporção muito mais elevada da dieta do que o faziam nas primeiras sociedades de agricultores. Sendo assim, estes itens são a principal fonte de vitamina D das populações modernas, mas os agricultores primitivos teriam que contar mais com a luz do sol para a produção da vitamina na pele. “Parece possível que a latitude não seja o principal fator na despigmentação da pele”, diz o pesquisador.

Outras características do DNA de La Braña observadas pela equipe são as de que (I) os genes envolvidos na quebra da lactose (principal açúcar presente nos laticínios) e do amido (nutriente fundamental das plantas cultivadas) estavam em uma forma “ancestral”, sugerindo que os caçadres-coletores não eram bons na digestão destes alimentos que, posteriormente, atingiram notoriedade na dieta das sociedades de agricultores; e, ao contrário do que pensavam os pesquisadores, (II) o sistema imunológico dele tinha traços originados antes da ascensão da agricultura, sendo capaz de defender o corpo contra doenças como a tuberculose, e a pneumonia e a malária (esta última era comum no sul da Europa até um período relativamente recente da história), que, acreditavam os cientistas, foram transmitidas aos humanos pelos animais a partir da domesticação do gado, das ovelhas e de outras espécies.

Dos 40 genes envolvidos na imunidade abrangidos pelo estudo, 24 (60%) eram semelhantes aos do europeu moderno. A propósito, Wolfgang Haak, pesquisador de DNA antigo da Universidade de Adelaide, Austrália, observa que “a primeira linha de defesa contra os agentes patogênicos já estava lá”. Lalueza-Fox pondera que as epidemias que afligiram os primeiros agricultores no Oriente Médio podem ter se propagado pela Europa continental antes que os próprios agricultores tenham se estabelecido na área, resultando nos mecanismos de defesa adquiridos pelos caçadores-coletores. De acordo com Willerslev e Lalueza-Fox, o genoma de La Braña fornece evidências que apoiam a hipótese inicial de que os caçadores-coletores europeus formavam uma população genética e culturalmente coesa muito antes da chegada da agricultura.

O novo genoma ainda contém semelhanças significativas com o de uma criança de 24 mil anos encontrada no sítio paleontológico de Mal’ta, na Sibéria, cujo DNA foi sequenciado por Willerslev no ano passado. Segundo o pesquisador, a coincidência indica que pode ter havido um “fluxo genético substancial entre o leste e o oeste”, levando a populações mais homogêneas do que teorias anteriores previam.

Pontus Skoglund, geneticista da Universidade de Uppsala, Suécia, diz que tal conclusão encontra suporte no seu próprio trabalho com o DNA de antigos caçadores-coletores escandinavos que, mesmo sendo originários do extremo norte da Europa, demonstram afinidades genéticas não apenas com o homem de La Braña, como, também, com a criança de Mal’ta. “Fica bem claro que estamos olhando para um grande divisor de águas genético” durante a transição da caça/coleta para a agricultura, quando a biologia foi alterada radicalmente, diz Skoglund. Os agricultores ao redor da Europa “parecem iguais”, e o mesmo ocorre com os caçadores-coletores, ao contrário do que a geografia, por si só, indicaria.

Fonte: Science

Deixe um comentário

Information

This entry was posted on 27 de Janeiro de 2014 by in Biologia, Paleontologia and tagged , , , , .

Navegação